Entrevista a Anatolii Kryvolapov

«Os EUA não vão deixar<br>a Ucrânia tão cedo»

Hugo Janeiro

Em con­versa du­rante a Festa do Avante!, o editor-chefe do jornal do Par­tido Co­mu­nista da Ucrânia – ile­ga­li­zado pelas au­to­ri­dades ucra­ni­anas –, Ana­tolii Kry­vo­lapov, re­latou ao Avante! a si­tu­ação que se vive no país após o golpe de Es­tado de Fe­ve­reiro de 2014 e na sequência da ins­ta­lação de uma junta go­ver­na­tiva de cariz fas­cista no país.

O nosso país está sob ocu­pação dos norte-ame­ri­canos

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O golpe de Es­tado ins­talou na Ucrânia uma junta go­ver­na­tiva de cariz fas­cista. Qual é o ponto da si­tu­ação?

A his­tória dos acon­te­ci­mentos dá-nos a ideia de quem são os ac­tores e in­te­resses em pre­sença, e essa ini­ciou-se antes de 2014. Já em 2013, em al­gumas re­giões da Ucrânia, as forças ditas na­ci­o­na­listas co­me­çaram a ocupar sedes ad­mi­nis­tra­tivas e de­pó­sitos de armas, in­cluindo al­guns com mís­seis terra-ar. Digo isto para que se per­ceba de onde veio e de onde vem, em parte, o ar­ma­mento que as mi­lí­cias fas­cistas de­ti­nham aquando do golpe de Es­tado de No­vembro-Fe­ve­reiro de 2014, e aquele que hoje ainda con­servam. Es­ti­mamos que no total te­nham à sua dis­po­sição cerca de nove mi­lhões de armas de fogo de vário tipo.

Nos acon­te­ci­mentos de 2014 na [Praça] Maidan, par­ti­ci­param não apenas os grupos fas­cistas, que então se tor­naram vi­sí­veis, mas igual­mente uma parte da po­pu­lação que havia sido ganha para a opo­sição ao Go­verno, par­ti­cu­lar­mente os jo­vens en­tu­si­as­mados com a adesão à União Eu­ro­peia. Tra­tava-se de ca­madas da po­pu­lação aci­ca­tadas pela cam­panha de ódio an­ti­co­mu­nista, anti-se­mita, anti-União So­vié­tica e anti-Rússia.

Para com­pre­ender os fe­nó­menos ac­tuais na Ucrânia, temos que re­gressar pe­ríodo em que clubes de fãs de fu­tebol co­me­çaram a ser in­fil­trados por fas­cistas, os quais, por sua vez, con­quis­taram a ju­ven­tude para o ideário [Stepan] Ban­dera (co­la­bo­ra­ci­o­nista com a ocu­pação nazi da Ucrânia du­rante a Se­gunda Guerra Mun­dial e con­si­de­rado o fun­dador do «na­ci­o­na­lismo» ucra­niano).

Ao prin­cípio, as au­to­ri­dades, in­cluindo a FIFA, re­a­giram. Com o tempo, as ma­ni­fes­ta­ções fas­cistas nos es­tá­dios de fu­tebol e fora deles foram au­men­tando, en­quanto que a re­acção das au­to­ri­dades foi di­mi­nuindo. Co­meçou-se a falar com in­sis­tência em grupos de jo­vens «na­ci­o­na­listas», que re­ce­biam treino mi­litar na Po­lónia, nos es­tados do Bál­tico e nas re­giões oci­den­tais da Ucrânia.

Eu tes­te­mu­nhei casos em que os gra­du­ados da po­lícia le­vavam agentes para longe da Maidan. Quando ques­ti­o­nados, res­pon­deram-me que os mi­li­ci­anos na Maidan ti­nham balas e eles ti­nham apenas balas de bor­racha, Isto poucas horas antes dos con­frontos que re­sul­ta­riam na queda do go­verno [de Victor Ia­nu­ko­vitch, a 21/​22 de Fe­ve­reiro de 2014].

Não po­demos es­quecer, ainda, que o go­verno de Ia­nu­ko­vitch, antes da vi­o­lência na Maidan, con­cordou e subs­creveu os termos da trégua apre­sen­tados pela Po­lónia, Ale­manha e França. Al­guém não eu­ropeu or­denou a [Ar­seniy] Yat­senyuk (viria ser de­sig­nado pri­meiro-mi­nistro a 27 de Fe­ve­reiro de 2014) para não a cum­prir o acordo, e este di­rigiu-se à tri­buna da Maidan e ins­tigou à con­ti­nu­ação da re­volta ar­mada.

De­pois da fuga de Ia­nu­ko­vitch, o co­mando po­lí­tico-mi­litar que­brou-se de­fi­ni­ti­va­mente. As tropas dis­per­saram e os gol­pistas, em par­ti­cular Alek­sandr Tur­chinov [do par­tido da ex-pri­meira-mi­nistra Iulia Ti­mo­chenko] tomou conta do poder (foi no­meado pre­si­dente in­te­rino a 22 de Fe­ve­reiro pelo par­la­mento numa «vo­tação» tu­mul­tuosa). Co­meçou então a dar or­dens «ofi­ciais» a Ya­rosh [Dmitry], líder dos pa­ra­mi­li­tares nazi-fas­cistas do Sector de Di­reita, a quem o novo poder abriu as portas porque estes os ti­nham aju­dado a con­quistar o poder.

O Sector de Di­reita foi mo­bi­li­zado quase de ime­diato para o Don­bass. Foram cha­mados a in­tervir a pre­texto de a po­pu­lação local se re­cusar a falar ucra­niano. Usaram-se ar­gu­mentos in­sanos ba­se­ados numa ale­gada ameaça russa, os quais ser­viram para que a Ucrânia fosse des­tino de muitos mi­lhões de dó­lares de «ajuda ex­terna». Não es­que­çamos que a Sra Vic­toria Nu­land afirmou que os norte-ame­ri­canos já ha­viam in­ves­tido cerca de 5 mil mi­lhões de dó­lares na «de­mo­cra­ti­zação» da Ucrânia. Um in­ves­ti­mento destes conduz a uma con­clusão: os EUA não vão deixar a Ucrânia tão cedo.
De­pois su­cedeu a questão da Cri­meia...

Que marcou o en­vol­vi­mento da Rússia nos acon­te­ci­mentos...

Na Cri­meia a Rússia tinha um efec­tivo mi­litar igual ao da Ucrânia desde o des­mem­bra­mento da URSS. Muitos mi­li­tares ucra­ni­anos que es­tavam na Cri­meia re­cu­saram as or­dens de mo­bi­li­zação de Kiev para ou­tras re­giões do país. Se re­cu­armos um pouco na his­tória, per­ce­bemos que a Cri­meia só passou a fazer parte da Ucrânia em 1954 por de­cisão de [Ni­kita] Kh­ru­chov.

O im­por­tante, no en­tanto, é que quando existia a URSS, a dis­puta da Cri­meia [entre as re­pú­blicas da Ucrânia e da Rússia] não fazia sen­tido. Foi so­mente de­pois da mu­dança de poder na Ucrânia e de os EUA avan­çarem com a pos­si­bi­li­dade de ins­ta­larem lá bases ou um con­tin­gente mi­litar, que a questão as­sumiu be­li­co­si­dade.

Os di­ri­gentes oci­den­tais querem ig­norar que na Cri­meia foi re­a­li­zado um re­fe­rendo, e que o seu re­sul­tado foi es­ma­ga­dor­mente pela in­te­gração da pe­nín­sula na Fe­de­ração Russa. Su­frágio e pro­cesso que pas­saram por todos os trâ­mites le­gais.

Em se­guida elevou-se o con­flito nas re­giões rus­só­fonas do Leste da Ucrânia, onde foram au­to­pro­cla­madas re­pú­blicas au­tó­nomas. Os com­bates foram en­tre­tanto in­ter­rom­pidos, mas mantém-se o im­passe. Existe saída?

Se o acordo de Minsk ti­vesse sido cum­prido por Kiev, o qual in­cluía o re­gresso das tropas da linha da frente, neste mo­mento já es­ta­ríamos mais perto da paz. Ainda há tempo para que [os acordos de Minsk] se cum­pram, em­bora os meios de co­mu­ni­cação so­cial do­mi­nantes in­sistam que estão ul­tra­pas­sados. Per­cebe-se porque o fazem.

Evi­den­te­mente que os EUA têm de estar dis­postos a ne­go­ciar. A julgar pelos acon­te­ci­mentos dos úl­timos anos no Afe­ga­nistão, no Iraque, na Líbia, na Síria e no Iémen, cujas con­sequên­cias das guerras pro­mo­vidas pelos EUA/​NATO para aqueles povos e para a Eu­ropa estão à vista, é caso para nos manter-mos alerta e apre­en­sivos.

Os EUA já têm bases de mís­seis na Ro­ménia, nos países do Bál­tico, na Po­lónia, e pro­jectam a en­trada da Ucrânia na NATO. Se­jamos claros: por uma questão de se­gu­rança, a Fe­de­ração Russa não pode nunca aceitar a pos­si­bi­li­dade de os EUA/​NATO ins­ta­larem mís­seis nas re­giões Leste da Ucrânia, por isso, para Mos­covo, ceder [ao avanço dos EUA/​NATO] não é uma opção.

Uma das me­didas to­madas pelo go­verno gol­pista da Ucrânia foi a ile­ga­li­zação do Par­tido Co­mu­nista da Ucrânia (PCU). Em que ponto se en­contra o pro­cesso?

A de­cisão de ile­ga­lizar o PCU não é ainda de­fi­ni­tiva. Claro que nos en­con­tramos numa si­tu­ação muito di­fícil. As mi­lí­cias fas­cistas têm campo aberto para per­se­guir e agredir mi­li­tantes e di­ri­gentes do PCU.

No plano ju­di­cial e da cam­panha de in­to­xi­cação da opi­nião pú­blica, nos úl­timos dois anos as­sis­timos à in­vo­cação dos mais di­versos ar­gu­mentos para a nossa ile­ga­li­zação. Le­van­taram-nos mais de 400 pro­cessos. O di­rector do nosso jornal, bem como vá­rios di­ri­gentes, foram presos.

Desde o der­rube vi­o­lento do go­verno ucra­niano, em 2014, que o PCU alerta que a si­tu­ação eco­nó­mica e so­cial se tem vindo a agravar, de­sig­na­da­mente após os acordos de «ajuda» ce­le­brados com o FMI e a UE. Em que é que tal se traduz?

A Ucrânia deixou de poder vender os seus pro­dutos agrí­colas e al­gumas das terras mais pro­du­tivas da Eu­ropa estão a ficar aban­do­nadas. Os que re­sistem, tra­ba­lham quase ex­clu­si­va­mente para se sus­ten­tarem.

O ob­jec­tivo desta po­lí­tica é deixar essas terras li­vres para as mul­ti­na­ci­o­nais. Existem mesmo já al­guns casos em que grandes em­presas do agro­ne­gócio se apos­saram de pro­pri­e­dades e cons­troem infra-es­tru­turas antes mesmo de serem emi­tidas as li­cenças de­vidas. Existe mesmo quem pro­mova que a ex­plo­ração da­quelas vastas áreas de ter­ri­tório per­mi­tirá...acabar com a fome no mundo!

Nós, co­mu­nistas, sempre nos opu­semos a pro­cessos vende-pá­trias. Neste mo­mento, essa opo­sição é mais di­fícil de con­cre­tizar e alargar.

Na in­dús­tria, es­ti­mamos que cerca de 20 por cento da ca­pa­ci­dade ins­ta­lada tenha sido já des­truída, in­cluindo tec­no­logia de ponta. Para os EUA, a Ucrânia deve ser so­mente um país agrí­cola. Em vá­rias ci­dades do Leste do país, grandes fá­bricas que em­pregam cerca de 50 mil ope­rá­rios e ou­tros tra­ba­lha­dores estão sob ameaça de en­cer­ra­mento. Por exemplo, a maior fá­brica de au­to­mó­veis da Eu­ropa.

Creio que isto per­mite-nos per­ceber não apenas o con­flito no Leste da Ucrânia, mas também que o nosso país está sob ocu­pação dos norte-ame­ri­canos e sub­ju­gado aos seus in­te­resses.

 



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